sábado, 3 de maio de 2008

8/7/2000

Extraído de “Pêssego Gay / Architectusaurus Erectus)
Alfred Biermann e Nestor Pinto Madeira

A transição dos sistemas semi-artesanais para os chamados meios de produção modernos teve um efeito marcante: a substituição das lideranças do setor da construção. Saíram de cena pessoas envolvidas emocionalmente com as obras e entraram os novos empresários, cujo único vínculo com o setor era a rentabilidade.

Os construtores tradicionais, cujo maior delito era pagar propinas aos fiscais dos municípios, não compactuaram com o sistema viciado das associações de poupança e crédito, começava a era dos “Ex”.

A partir do final dos anos setenta, os novos donos de construtoras eram ex-várias coisas. Ex-taxistas, ex-pedreiros, ex-corretores, ex-garçons, etc. Muitos nunca tinham visto um tijolo em toda sua vida, tornaram-se empresários da construção civil graças às “facilidades” existentes na obtenção de créditos.

A ascensão deste grupo heterogêneo coincide com o início da queda da qualidade das edificações e urbanizações em todo o País. Um fator que contribuiu para que isto tenha ocorrido foi a corrupção e a incompetência que havia entre os profissionais encarregados pelos agentes financeiros para fiscalizar as obras.

Era um ciclo completo. A ponta de cima vendia o crédito ignorando dados cadastrais ruins, a ponta de baixo vendia laudos de vistoria positivos ignorando a péssima qualidade do que havia sido executado. As provas são os imóveis sucateados espalhados pelas cidades de todo o País, prédios que foram abandonados pelos mutuários antes da conclusão do pagamento das prestações.

Em 1980 boa parte das construtoras que existiam em 76 já estavam fora do mercado. Nossos clientes deste período eram todos “ex”, mais uma vez fizemos trabalho de alfaiates.

Os construtores para quem estávamos projetando não admitiam qualquer sofisticação, os edifícios daquele período eram o que se poderia qualificar piedosamente de “construções despojadas”. Ofereciam condições básicas de habitabilidade: o melhor aproveitamento possível das peças reduzidas ao tamanho mínimo permitido pelo código de obras.

8/8/2000

Extraído de “Pêssego Gay / Architectusaurus Erectus)
Alfred Biermann e Nestor Pinto Madeira

Em vários pontos da Ilha, a beleza natural cedeu lugar a construções e urbanizações medíocres; a Via Expressa, que ligava a BR-101 ao centro, tornou-se um corredor de favelas; nos morros os barracos proliferaram como nunca antes.

As praias, que eram paraísos no início dos anos setenta, estavam sendo desfiguradas por prédios e casas que, não bastasse sua falta de graça, poluíam o mar despejando os esgotos na areia.

17/8/2000

Extraído de “Pêssego Gay / Architectusaurus Erectus)
Alfred Biermann e Nestor Pinto Madeira

Foi assim que boa parte dos produtos oferecidos pela indústria da construção civil passaram a ser de baixa qualidade. As pessoas continuaram a comprar imóveis acreditando na infalibilidade da tecnologia. Quando ocorria uma tragédia, a morosidade da justiça gerava uma punição adicional para os que tinham caído no conto da obra que iria durar “por toda a vida”.

A impunidade de corruptos e corruptores abalou a confiança das pessoas na eficiência do poder judiciário, afastou a população da política e gerou uma indignação que foi canalizada para outras causas. Teve início a “caça às bruxas” envolvendo causas ambientais, as quais, supostamente, não eram um jogo de cartas marcadas.

27/9/2000

Extraído de “Pêssego Gay / Architectusaurus Erectus)
Alfred Biermann e Nestor Pinto Madeira

Os efeitos da repressão sobre nossos contemporâneos podem ser percebidos pela falta de lideranças. Os milicos quebraram a espinha da nossa turma. Foram tão poucos os que tiveram ou têm algum papel significativo no Brasil contemporâneo que talvez venhamos a entrar para a história como a geração que não existiu.

Somos pessoas com “indignação de boteco”, que falam grosso na presença de meia dúzia de amigos, igualmente amedrontados, e apenas quando temos a certeza de que “os homens” não estão nos escutando. Muitos ainda não acreditam que o DOPS foi extinto, que os torturadores já estão aposentados jogando dominó com os colegas nos clubes dos militares.

A nossa geração virou as costas para o Brasil e ele para nós. A maré de corrupção e impunidade que está sendo exposta na mídia é o atestado de incompetência que carimbaram nas nossas testas.

Com medo de sofrermos eventuais conseqüências, nos escondemos, não fomos à luta. O grupo que percebeu isto tomou conta do cenário. Eles o fizeram com a certeza de que aqueles que deveriam estar tomando as atitudes que manteriam o País funcionando de maneira adequada estavam escondidos, atrás das grades que supostamente protegem suas casas, assistindo a programas de auditório na televisão. As cidades em que vivemos e as mudanças que sofreram ao longo do período em que ajudamos a construir parte delas são o maior atestado do nosso fracasso.

30/11/2000

Extraído de “Pêssego Gay / Architectusaurus Erectus)
Alfred Biermann e Nestor Pinto Madeira

A feiúra é a ferida exposta que atesta a queda da qualidade de vida nas áreas urbanas. Assim como as pessoas não demonstram respeito por gente desleixada, também não o demostram com relação às cidades mal cuidadas. Quem passa por ruas com leitos e calçadas esburacadas, onde predominam construções de mau gosto, não tem respeito por elas.

Em Florianópolis, a feiúra das construções é o traço comum entre a maioria dos bairros. À medida que casas vão sendo substituídas por caixotinhos, áreas da cidade que antes eram agradáveis passam a ser desumanas.

É comum casas cercadas de grama e árvores darem lugar a edifícios, ou conjunto de prédios, em que o terreno é cimentado para dar lugar aos estacionamentos e áreas de manobras dos carros. Estamos sufocando os espaços verdes sob camadas de concreto e asfalto.

Os técnicos de planejamento urbano não são responsáveis por esta situação. O Plano Diretor de Florianópolis é um documento que tenta preservar um mínimo de humanidade evitando o adensamento excessivo dos bairros. Mas os técnicos são impotentes frente a “maleabilidade” dos vereadores que alteram os zoneamentos de acordo com os interesses de seus patrocinadores, provocando um aumento do volume de construções em áreas que, originalmente, deveriam ser preservadas por meio de uma ocupação racional.

27/1/2001

Extraído de “Pêssego Gay / Architectusaurus Erectus)
Alfred Biermann e Nestor Pinto Madeira

Os novos senhores da economia local, que já foram os “Ex” e agora são “Os”, chegaram à maturidade. Eles já descobriram que caviar são bolinhas pretas com cheiro familiar e sabor intragável, visitaram vários locais do mundo onde conseguiram aproveitar pouco, pois são monoglotas e não se interessam pela cultura dos países que visitaram, contrataram “conselheiros de moda” para ajudá-los a escolher as roupas adequadas, apesar de às vezes derrapar e usarem meias soquetes brancas com terno Armani e sapatos de cromo alemão. Descobriram que o único lugar onde podem ser “poderosos” é na sua cidade.

O que eles não percebem é que, ao descer de seus carros, com estrelinhas de três pontas no capô, carregam em torno de si a aura virtual de um fusquinha 63, uma calça de brim coringa, um par de chinelos que “não tem cheiro e não soltam as tiras” e brilhantina Glostora no cabelo.

Já que “lá fora” são vistos como apenas mais um grupo “de gente barulhenta do terceiro mundo”, aqui usufruem do imenso prazer de ditar as regras que estão criando as cidades desagradáveis em que vivemos. A compra do poder no cenário local substitui a frustração de serem considerados “grossos” em cidades e países onde prevalece a civilidade.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial